Paulo era um homem muito talentoso, e seu ministério abrangente e eficaz1 foi grandemente ajudado pelo fato de que ele transitava bem em dois mundos, o judeu e o helenista (talvez devêssemos acrescentar um terceiro — o mundo romano). Ele era "israelita da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim" (Rm 11.1; cf. 2Co 11.22), algo do que ele claramente se orgulhava. Sobre descendência e realização ele pôde escrever: "Se qualquer outro pensa que pode confiar na carne, eu ainda mais: circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel, da tribo de Benjamim, hebreu de hebreus; quanto à lei, fariseu, quanto ao zelo, perseguidor da igreja; quanto à justiça que há na lei, irrepreensível" (Fp 3.4-6).
Seu estilo de vida estava de acordo com sua profunda convicção de que o caminho para Deus não era o da obediência à lei, mas, dependendo da ocasião, podia seguir os costumes judaicos; por exemplo, Lucas nos conta que ele cortou o cabelo em Cencréia por causa de um voto (At 18.18), evidentemente de nazireu2. Apesar de se tornar um cristão fervoroso, vindo a dedicar-se inteiramente a viver por Cristo e a pregá-lo, ele não retornou ao judaísmo. Ele podia perguntar: "Qual é a vantagem do judeu? Ou qual a utilidade da circuncisão?" e apesar de a lógica do seu argumento nos fazer esperar a resposta "nenhuma", ele responde: "Muita, sob todos os aspectos..." (Rm 3.1-2). Em todos os seus escritos ele faz constantes referências às Escrituras dos judeus, e está claro que até o fim dos seus dias ele prezava muito o fato de Deus ter dado tal tesouro ao seu povo.
Há uma grande diferença na maneira como ele tratava os escritos gregos. Fica claro, pelo conhecimento que Paulo tinha da língua grega, que todos os tesouros da literatura grega estavam abertos para ele, mas em todos os seus textos ele cita autores gregos apenas duas vezes (lC o 15.33; T t 1.12; Lucas fala de mais uma citação, esta num sermão, em Atos 17.28). O interesse de Paulo estava no Antigo Testamento; ele o cita constantemente e, muito interessante, quase sempre da Septuaginta (em grego) e não do hebraico.
Paulo se identificava com Israel. Mesmo escrevendo aos gentios, ele chama Abraão e também Isaque de "nosso pai" (Rm 4.1; 9.10) e faz referência aos "nossos pais" (lC o 10.1). Ele espera paz para "o Israel de Deus" (G1 6.16)3. Talvez essa identificação em nenhum lugar seja tão tocante como no tratamento emocional que ele dá ao problema da rejeição do Messias por Israel. Cristo era tudo para Paulo (Fp 3.8), mas ele podia desejar ser maldito e separado de Cristo se isso pudesse ser de proveito para seus companheiros israelitas (Rm 9.3). Fica claro, de tudo o que Paulo escreveu, que ele valorizava muito sua herança judaica. Apesar de não poder compará-la com a vida cristã (2Co 3.11), ele ainda achava que havia "glória" nela (Rm 9.4; 2Co 3.7). Ele era diferente de muitos convertidos a uma nova religião, que se tornam amargos em relação à fé que deixaram para trás. Paulo era totalmente cristão, mas também totalmente israelita, e seus escritos não farão sentido para, nos se nao tivermos isso em mente4.
No entanto, apesar de ser totalmente judeu e, ao que parece, mesmo pensando que no começo seu ministério seria entrejudeus (At 22.17-20), seu trabalho acabou sendo feito quase só entre gentios. Ele estava preparado para isso por ser natural de Tarso, onde recebera uma boa educação e se familiarizara totalmente com a vida num mundo de cultura helenista. Ele era cidadão romano (At 16.37; 22.25-28), e nessa condição fez seu conhecido apelo a César (At 25.11). Combina com sua cidadania sua insistência a que os romanos estejam sujeitos às autoridades que os governam (Rm 13.1-7) e que se ore por reis e por todos os que exercem autoridade (lT m 2.1-3). É evidente que ele valorizava sua herança, tanto a grega como a romana.
Apesar de ser judeu, Paulo deixou claro que o trabalho para o qual fora chamado devia ser feito em boa parte entre os outros povos do mundo. Ele era o apóstolo aos gentios (Rm 11.13), "ministro de Cristo entre os gentios" (Rm 15.16); seu chamado era pregar Cristo entre os gentios (G 11,16; E f 3.8). Falou de um acordo com os apóstolos de Jerusalém pelo qual ele e Barnabé deviam dirigir-se aos gentios, enquanto Tiago, Pedro e João voltavam-se para os judeus (G1 2.9). Ele se chamou de "prisioneiro de Cristo Jesus, por amor [dos] gentios" (E f 3.1), e de "mestre dos gentios" (lT m 2.7; também, em alguns manuscritos, 2Tm 1.11).
Esse pano de fundo complexo complica nosso estudo dos escritos de Paulo. O mesmo acontece com o estilo literário do apóstolo. Ele corre na frente, muitas vezes deixando de fora palavras que esperava que seus leitores completassem (e que eles esperam estar completando corretamente!). Ele é um pensador original, às vezes lutando com a língua para dizer coisas que ninguém tinha dito antes. Isso aumenta nossa dificuldade e, ao mesmo tempo, torna nosso estudo mais compensador5. Naturalmente há muita polêmica sobre quais escritos são mesmo de Paulo. Em nossos dias, muitos estudiosos afirmam que as cartas pastorais não são do grande apóstolo (apesar da possibilidade de ele ter escrito alguns fragmentos incorporados nas cartas). Não são poucos os que têm dúvidas sobre Efésios e/ou Colossenses, e 2Tessalonicenses também é rejeitada por alguns. Entrar na discussão da autenticidade de todos esses escritos exigiria uma digressão grande do meu propósito teológico principal. Por isso, permita-me simplesmente dizer que pretendo incluir todas no escopo deste estudo. Têm sido apresentadas boas razões para que elas sejam aceitas como de Paulo6 e, apesar de muitos não se deixarem convencer, pelo menos há algo em todas elas que levou a igreja a aceitá-las como produto de Paulo. No sentido mais amplo do termo, elas são "paulinas";7 destacam-se de escritos como os de João ou os sinóticos. Podemos muito bem estudá-las juntas.
Alguns estudiosos mostram o desenvolvimento havido no pensamento de Paulo das primeiras para as últimas cartas, mas essa busca provavelmente é em vão. As cartas procedem todas de um período de tempo relativamente curto, perto do fim da vida de Paulo. Paulo já era cristão e havia pregado durante dezessete anos ou mais antes de escrever a primeira das cartas que temos dele. A essência do seu pensamento deve ter sido formada bem antes de ele escrever suas cartas. As diferenças entre as cartas devem ser explicadas pelas circunstâncias diferentes do apóstolo e pelas diversas situações que as provocaram, e não por um suposto desenvolvimento em sua maneira de pensar. Precisamos ter em mente que os escritos de Paulo são cartas de verdade, escritas para pessoas de verdade que enfrentavam problemas de verdade.
Ele nenhuma vez tenta organizar uma sinopse da sua teologia. Pela maneira que alguns temas se repetem e diante do modo que Paulo trata deles, podemos deduzir que eles são importantes. Mas ele não falou muito sobre assuntos não controversos, e isso inclui temas importantes como a autoridade das Escrituras ou a pessoalidade de Deus. Todas as cartas de Paulo são escritos ocasionados, não capítulos de uma teologia sistemática, e temos de tomar cuidado para não pensar que podemos apresentar uma sinopse organizada de todos os temas teológicos que ele considerava importantes. Entretanto, tudo o que ele escreve tem base teológica, e isso nos permite fazer afirmações com confiança. Podemos não ser capazes de propor uma forma sistemática da "teologia de Paulo", mas podemos dizer com certeza que ele deu expressão a algumas idéias teológicas importantes. Constituam ou não essas idéias uma teologia completa, seu estudo pode ser compensador.
Não devemos esquecer que esses textos foram produzidos em datas remotas. Não há certeza sobre algumas datas, mas a mais antiga carta de Paulo que temos deve ter sido escrita uns vinte anos após a crucificação, e o conjunto principal dos seus textos completou-se em poucos anos. Por isso não demorou para os elementos essenciais da doutrina cristã aparecerem em sua formulação paulina. Esse fato é importante, principalmente numa época em que alguns críticos dão a impressão de que, durante muitos anos, a igreja antiga estava ocupada pela tarefa de desenvolver e moldar o que veio a ser a ortodoxia cristã.
Existem aqueles que afirmam que Paulo adotou muitas coisas da igreja antiga8, mas isso levanta a pergunta: "Qual igreja antiga?" Não há motivo para duvidar da estimativa de Martin Hengel de que Paulo se converteu "entre 32 e 34"9. Certamente houve cristãos antes de Paulo, mas não muitos. Se havia alguém que pertencia à igreja "antiga", Paulo era um deles; e quando a tradição cristã foi estabelecida, ele fez parte do processo10. Permita-me dizer com toda clareza que não há nenhuma razão para achar que houve grandes desenvolvimentos na teologia cristã antes de Paulo se tornar cristão. Sua teologia é muito completa e muito profunda — e muito antiga. Mas os escritos de Paulo são evidência sólida de que a posição cristã básica estava muito bem firmada antes da metade do primeiro século, menos de vinte anos após a morte de Jesus. Escritores que surgiram depois acrescentaram muito, mas a teologia de Paulo é rica e plena, e sua data antiga é um elemento importante.